Batalha Naval
Pediram-me um artigo que falasse de água.
Tá na mão: Sobreviventes.
Isto somos todos, eu e vocês, que estão lendo esta crônica.
Meros sobreviventes. Meros e míseros sobreviventes. Ou poderia ser salvados de incêndio. Tanto faz.
Explico.
Ontem, por exemplo, ouvi duas notícias no rádio do carro, que ligo pra disfarçar o trânsito que pego de manhã, quando vou trabalhar. Uma falava dos radares adulterados e que aplicam multas em quem está na velocidade correta como se estivesse em excesso de velocidade. Outra é a notícia da demora na devolução do imposto de renda porque o Governo está com pouco caixa.
Ou seja, só ontem, em alguns minutos de jornal, descobri que estou sendo vítima de duas novas maneiras de tomarem a minha grana. E, o que é pior, o trombadão é o próprio Governo.
As notícias de ontem não são diferentes das de anteontem. Todo santo dia tem uma bala perdida no nosso caminho.
Às vezes a bala perdida é apenas uma bala perdida, nem sei bem o porquê da expressão.
Afinal, a bala é perdida de acordo com o ponto de vista de quem vai ou de quem vem. Pode ser bala achada.
Aliás, abrindo parênteses, vi uma faixa no poste a respeito de um cachorrinho perdido. Pensei na pobre bala perdida, um garotinho chorando pela falta da bala, a perdida.
Mas deixa pra lá. O fato é que a gente pode topar com balas perdidas de todo tipo.
Daquelas que saem dum tresoitão ou daquelas que saem do leão do imposto de renda ou de um genocida do trânsito ou mesmo de um chefete mal humorado de um cartório qualquer. Ou de uma anônima atendente do call center ou de um míope árbitro num inocente jogo de futebol. Conforme a hora, até uma palavra ríspida, um mal entendido, um desamor pode ser uma bala perdida.
Tenho a nítida impressão, de manhã quando levanto, que sou um encouraçado.
É, um encouraçado ou um destroier, desses de batalha naval, joguinho que costumava jogar nas aulas chatas de Francês, escondido do Professor Benoir.
Efe três, água, pê oito, água. É água. É água, mas passou perto.
Um navio feito de quadradinhos pintados de preto num mar de quadradinhos. Se a bala me acerta, quebro uma asa, arrebento a proa e às vezes afundo. Já afundei mil vezes. Um deputado acorda de mau humor, ipsilon treze, me arrebenta a popa. Um trombadinha começa a tremer de abstinência, dábliu nove, me estraçalha uma asa.
De noite, se nada me atingiu, um imposto novo, um pneu furado num buraco que devia ter sido tapado pela prefeitura, um pitbull que devia estar numa coleira, ou, se me atingiu, mas não me afundou, sou um sobrevivente, um salvado de incêndio.
Agora mesmo um burocrata de um cartório resolveu implicar comigo. Quero registrar uma escritura e ele acha que não posso. Eu tenho razão. Eu tenho certeza de que tenho razão. Reclamar para quem? Para o Poder Judiciário, este Poder maravilhoso que tudo pode consertar, de cuja apreciação nada ou ninguém escapa, conforme diz a Constituição, aquele livrinho que o Ulisses Guimarães fica exibindo eternamente na foto.
Mas, quanto tempo leva o Poder Judiciário para resolver uma questão? Pum, outra bala. Leva dez, quinze, vinte anos.
A mulher do atirador de facas não aguentou. De tanto quase morrer toda noite, respeitável público, um dia se mexeu de encontro à faca. Pra acabar logo com isso. A bala perdida era um punhal.
Sobrevivente? Até quando? Pode me afundar que eu estou ficando com o saco cheio de ser sobrevivente.
Nota:
Pediram-me um artigo que falasse de água para a revista Águas do Brasil.
Escrevi sobre Batalha Naval. Afinal, sem água não tem batalha naval.
Sergio Antunes
sergioantunes@ig.com.br
É procurador autárquico do Estado de São Paulo, exercendo suas funções no DAEE- Departamento de Águas e Energia Elétrica.