Bastidores de uma pesquisa científica

O objetivo, neste texto, é o de apresentar um breve relato do caminho percorrido e no qual se configurou a construção de um trabalho de pesquisa iniciado em 2015 sobre governança das águas, no âmbito dos comitês estaduais de bacia hidrográficas no Brasil, ou seja, uma versão da construção do caminho, ou ainda parte dos bastidores dessa construção. Este texto evidencia o caminho percorrido, algumas dificuldades e as escolhas empreendidas para o desenvolvimento do trabalho de uma tese e que se interlaçam a outras publicações vinculadas a um projeto de pesquisa. Esse caminho de pesquisa foi feito, refeito e reescrito, e ainda está em construção.

Acredito que nossas trajetórias de vida, em alguma medida, moldam nossa trajetória de pesquisa a partir do que vivemos e as escolhas que fazemos no percurso de formação. Grande parte da minha experiência de “mercado” está ligada à área de saúde, tendo ocupado diversos cargos, principalmente na Administração Pública, atuando em órgãos na esfera estadual, municipal e convênios de gestão, desenvolvendo atividades de gestão. E, no último período da Graduação em Administração, tive a oportunidade de participar do Projeto Rondon e fazer estágio na Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais (SES).

Essas experiências refletem dois pontos que considero vitais e sempre busquei como profissional e que, de certa forma, perpassam meu trabalho e minha pesquisa, que é a experiência de campo, a participação e a busca por ações cooperadas.

Pelo Projeto Rondon “… é necessário andar sobre ele [o mapa] para sentir de perto as angústias do povo, suas esperanças, seus dramas ou suas tragédias; sua história, e sua fé no destino da nacionalidade”. E, com o olhar de curiosa, buscava entender como “funcionavam” as organizações nas quais trabalhei indo além das minhas tarefas, saindo da “cúpula” da administração para rodar o campo, entender como era o trabalho dos outros e a prestação dos serviços, para desenvolver meu trabalho, mesmo que fosse o de produzir os relatórios necessários, algo inerente a “ser administrativo”.

Na SES, tive a oportunidade de participar de reuniões de Comissão Intergestores Bipartite (CIB), instância colegiada, conforme a legislação do SUS, responsável por pactuar a organização e o funcionamento das organizações e o funcionamento das ações e dos serviços de saúde integrados em redes de atenção à saúde. Acompanhar as reuniões me evidenciou as possibilidades de construções coletivas, a partir das deliberações e do consenso, levando em conta o envolvimento de diferentes atores, mas mostrando também as dificuldades e as diferentes capacidades dos entes municipais, principalmente os pequenos. Tema este que, de certa forma, me acompanhou no mestrado.

Tenho pesquisado a temática referente às organizações relacionadas à gestão dos recursos hídricos desde 2009, em virtude do início do mestrado na área de Meio Ambiente, quando iniciei minhas leituras acadêmicas sobre governança pública, consórcios intermunicipais e gerenciamento de recursos hídricos. Após o término do mestrado, continuei pesquisando e desenvolvendo outros trabalhos com meu ex-orientador, Reinaldo Dias, não apenas ampliando os temas da minha dissertação, mas abrangendo também políticas públicas, alianças estratégicas e a formação de parcerias multissetoriais, alguns publicados em livros.

Paralelamente, comecei a fazer disciplinas em diferentes programas de pós-graduação da Universidade Federal de Minas Gerais, algumas como ouvinte, objetivando aperfeiçoar meus conhecimentos e ingressar no doutorado.

As disciplinas isoladas realizadas dos programas de pós-graduação em Ciência Política – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – e em Administração – Faculdade de Ciências Econômicas – ampliaram meu olhar sobre as perspectivas de pesquisas e meus questionamentos sobre a gestão de recursos hídricos e de arranjos de governança.

Considerando que a Política Nacional de Recursos Hídricos foi instituída em 1997, após 20 anos, observam-se diferentes estágios de desenvolvimento e aplicabilidade no território nacional. Existiam, para mim, muitas perguntas sem resposta ou pouco estudadas envolvendo esses processos e as estruturas de governança adotadas nas organizações de bacias, tais como: os processos de governança alcançaram seus objetivos? Em caso afirmativo, como? Se não, por quê? Com essas e outras questões ingressei no doutorado com um projeto que tinha a pretensão de desenvolver instrumentos de avaliação dos arranjos de governança da água. Ou seja, selecionar indicadores de efetividade e desenvolver apropriado framework de avaliação de arranjos de governança da água, no intuito de contribuir tanto para a formulação de políticas quanto para pesquisas sobre o tema.

Entendo que o projeto, no formato em que havia sido construído, se encaixava mais em abordagem funcionalista, pois “está fortemente enraizado na sociologia da regulação, focalizando um ponto de vista objetivista. Sua preocupação é dar explicações racionais ao status quo, à ordem social, ao consenso, à integração social, à solidariedade e à satisfação das necessidades, recorrendo a uma abordagem que é realista, positivista, determinista e nomotética para buscar soluções para problemas práticos.” (Paes de Paula, 2015, p.54). Percebi que era uma tentativa de compreender os entraves relacionados ao cumprimento dos objetivos estabelecidos na referida política, e o proposto para o sistema nacional, nos moldes do pensamento de ‘ordem e progresso’.

Iniciei o doutoramento em março de 2015. Ainda no primeiro semestre do doutorado, dois fatos me fizeram perceber o quanto meu projeto ainda estava incipiente. O primeiro diz respeito à participação na disciplina obrigatória Teoria das Organizações (ministrada por Carrieri, com ementa e bibliografia extensíssimas) e às muitas perspectivas e autores debatidos, muitos dos quais eram completamente novos no meu universo de leitura. O segundo foi a participação no Observatório da Governança das Águas, promovido pelo WWF-Brasil (Oficina de Construção do Observatório, realizada 28 e 29 de maio de 2015) e, posteriormente, como membro do mesmo, no qual as questões abordadas nas reuniões iam ao encontro dos meus questionamentos. A saber, o Observatório das Águas objetiva ser um instrumento que articula uma rede de atores e instituições na produção e na disseminação de informações sobre a gestão integrada e participativa dos recursos hídricos brasileiros, tendo como proposta ser um observatório independente e autônomo, e acompanhar e fortalecer o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Nesse ponto, ao ouvir outros pesquisadores e experiências de participantes de outros estados e, ainda, com os ganhos teóricos obtidos nas disciplinas, comecei a questionar meu projeto de ingresso no doutorado.

Com essas novas leituras, novas visões e perspectivas, busquei, assim, novamente, ampliar o olhar sobre o tema do meu trabalho, “organizações de bacia hidrográfica e a gestão de recursos hídricos”. Percebi que ainda tinha um olhar de quem analisava a estrutura externamente e, então, comecei a tarefa de tentar apreender a influência do microambiente sobre o macro, buscando compreender como os atores dessas organizações são “formados” ou constituídos como representantes; como atuam dentro dos espaços participativos de forma a gerar as “ações” do Comitê; tentar compreender a ligação deles com as organizações e o segmento que representam (antes e depois das decisões, ou seja, o processo de consulta antes de uma votação e, depois, como a decisão tomada pelo coletivo retorna para a organização e o segmento)

Então, seria tentar analisar o Comitê, sua resolutividade ou não, partindo do entendimento dos atores que o compõem. Cabe salientar que a “resolutividade” mencionada diz respeito à ideia de que a “soma” das ações dos agentes resulta no planejamento das ações do comitê (tanto do plano de gerenciamento da bacia quanto do planejamento organizacional, o que inclui o estabelecimento de indicadores de monitoramento e avaliação).

Nesse sentido, iniciei a pesquisa e o mapeamento dos membros dos Comitês, a realização de entrevistas e, principalmente, a participação no Encontro Nacional de Comitês de Bacia. A princípio seria apenas para o desenvolvimento de um artigo, mas, como escreveu o poeta espanhol Antônio Machado, “Caminante, no hay camino, se hace camino al andar. Al andar se hace el camino”, as pesquisas realizadas ajudaram na configuração do novo projeto e, claro, na tese.

Durante a trajetória do doutorado nem sempre houve dias de sol ou brisas suaves entrando pela janela. Chegar ao final do doutorado foi muito difícil. Precisei trancar dois semestres. Pensei em desistir, que não conseguiria cumprir os requisitos do doutorado, mas toda tempestade, com o tempo, se torna mais amena. Apesar desse sentimento, neste período de trancamento, o conteúdo das disciplinas, as participações nos eventos, as entrevistas, ou seja, o ‘viver o campo’, continuaram sendo revistos e estudados.

Mesmo de forma muito lenta, estes estudos foram importantes para elaborar o projeto de tese, ampliado com as perspectivas de outros pesquisadores que culminou no projeto “Governança dos Recursos Hídricos” submetido e aprovado para financiamento pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA), via Programa Pró-Recursos Hídricos – Chamada n° 16/2017. A aprovação trouxe centralidade aos dias, energia, novas perspectivas, e tudo foi voltando a caminhar.

Aqui cabe trazer as palavras de Guimarães Rosa: “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.” (…) “A gente principia as coisas, no não saber por que, e desde aí perde o poder de continuação – porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada” (Fragmentos do Livro “Grande Sertão Veredas”, Rosa, 1994, p.448, 658).

Estudos organizacionais, aspectos metodológicos e uma tese sobre recursos hídricos

Os estudos organizacionais são agrupados em quatro modelos de paradigmas sociológicos (Burrell e Morgan, 1979), ou matrizes epistemológicas (Paes de Paula, 2016), que são a base ontológica e epistemológica, as quais formariam “algumas posições metateóricas” (CALDAS, 2007, p. 6) do desenvolvimento científico da área, organizadas em quatro amplas visões de mundo: funcionalismo, interpretativismo, estruturalismo radical e humanismo radical.

Burrell e Morgan sobrepuseram esses paradigmas em dois eixos objetivista e subjetivista, que recorrem às dimensões da sociologia da regulação e da sociologia da mudança radical, respectivamente. O primeiro eixo caracteriza-se por abordagem realista (busca pelo concreto), positivista, determinista e nomotética (capaz de estabelecer a lei). Já o segundo eixo caracteriza-se por abordagem nominalista, antipositivista, voluntarista e idiográfica (relacionadas a aspectos específicos, individuais).

Os marcos ontológicos estão ligados à essência da natureza dos fenômenos investigados. A realidade investigada pode ser entendida a partir de duas diferentes óticas, sendo uma externa, de natureza objetiva, a qual se impõe e existe independentemente de cada um dos indivíduos que compõem os grupos sociais e outra interna, produto da consciência e cognição individual, portanto, construída a partir da interação entre os diferentes indivíduos que compõem os grupos sociais. Já o eixo objetividade versus subjetividade diz respeito aos marcos epistemológicos dos diferentes paradigmas apresentados. Os marcos epistemológicos dizem respeito à obtenção e à construção de conhecimento. O acesso ao conhecimento tem relação com as aproximações estabelecidas entre o indivíduo e a realidade, construída a partir das relações objetivas ou subjetivas estabelecidas nos grupos sociais. É esperado que pesquisadores utilizem metodologias que sejam consistentes com suas perspectivas teóricas sobre a natureza do ser e da realidade (ontologia) e a natureza do conhecimento (epistemologia) (Fonseca, 2011, p.4).

Para o desenvolvimento do trabalho não se buscou um enquadramento prévio em nenhum destes eixos ou visões, nem a padronização de categorias analíticas. Como observa Hanna Arendt (2002), “não precisa ser a marionete de um destino situado fora de seu ser” (aqui entendido como as etiquetas classificatórias dos muitos “ismos” e “istas”). Porém, toda busca parte do que já se tem: saberes, preocupações, perspectivas, concepções prévias e modos de ver a realidade que influenciam o desenvolvimento de uma pesquisa.

Grande parte dos estudos de administração e administração pública é guiado por uma abordagem objetivista, fortemente baseada em modelos tradicionais de regulação e com foco em resultados, ou seja, com predomínio do paradigma funcionalista, sendo uma perspectiva “fundamentalmente reguladora e prática, em sua orientação básica, e está interessada em compreender a sociedade de maneira que produza conhecimento útil” (Morgan, 2007, p.16).

Como pesquisadora, assume-se a necessidade de produção do “conhecimento útil” e de caráter descritivo e classificatório (como mencionado no prólogo). Porém, o desenvolvimento do trabalho não teve um caminho linear, ou sequencial. Também não se baseou nos pressupostos ontológicos de que

o pesquisador se distancia do campo que ele “está analisando com rigor e a técnica do método científico” e o processo de conhecimento (epistemologia) se dá pelo uso de procedimentos de mensuração. O estudo foi sendo desenvolvido no caminhar e, passando de mero expectador, coletor de dados, a participante, foi construído em um processo de conhecimento do campo, de afirmação e reconhecimento, por parte dos sujeitos sociais estudados, quanto a ser pesquisador e ambientalista, e, posteriormente, colaborador na área de comunicação (produção de conteúdo multimídia para a Rede Brasil de Organismos de Bacia, desde o 8º Fórum Mundial das Águas e editora convidada da REBOB Mulher). Constituiu-se, assim, um colocar em prática a arte da política, ou seja, o estabelecimento de um conjunto de interações que visavam atingir determinado objetivo, qual seja, o de tornar-se confiável, buscando minimizar as dúvidas sobre “de onde você vem; o que você vai fazer com esses dados; como teremos acesso a isso”, dentre outras questões, para, então, ouvir o outro. Esse é o ponto fundamental que se alinha ao paradigma interpretativista, no qual a “sociedade é entendida a partir do ponto de vista do participante em ação, em vez do observador”, buscando “compreender o processo pelo qual as múltiplas realidade compartilhadas surgem, se sustentam e se modificam” (Morgan, 2007, p.16).

Para o entendimento do campo de pesquisa escolhido foi empregado, como suporte metodológico à consecução do objetivo, a realização de entrevistas, a observação participante e não participante, além de conversas informais, buscando melhor apreender as teias de significação dos arranjos de governança. O entendimento é o de que esses espaços são “produzidos pela interação humana, mudam cooperativa e conflitantemente”. Como foi proposto por Weick (1969), “as organizações são verbos, não substantivos” (VERGARA; CALDAS, 2007, p.225) e, de modo análogo, também os arranjos de governança para gestão das águas.

Nas palavras de Vergara e Caldas (2007), “para os interpretacionistas, as organizações são processos que surgem das ações intencionais das pessoas, individualmente ou em harmonia com outras”. Assim, se os arranjos de governança para a gestão das águas são processos produzidos pela interação dos indivíduos, durante a fase de desenvolvimento do projeto de pesquisa, foi preciso revisitar textos de Geetz (2002, 2007), Levi-Strauss, bem como de autores nacionais, como Magnani (2002) e Cavedon (2014), seja nos que foram escritos por eles ou nos que foram baseados em suas experiências. Eles têm um ponto em comum: o observar o outro. Mais que observar, tentar compreender as relações entre as pessoas, as hierarquias, os hábitos e os costumes

A escolha por acompanhar reuniões e eventos de Comitês de Bacia teve como inspiração os estudos etnográficos, tendo em vista que, para estudar os sujeitos sociais que compõem esses espaços, como definiu Malinowski (1986 p.27), “as fontes não estão incorporadas em documentos materiais, imutáveis, mas no comportamento e na memória de homens vivos.”

O primeiro, já mencionado, foi a participação na 2ª Oficina de Construção do Observatório de Governança das Águas. O segundo evento acompanhado, e mais intenso, foi o XVII Encontro Nacional de Comitês de Bacias Hidrográficas (ENCOB), promovido pelo Fórum Nacional de Comitês de Bacia Hidrográfica (FNCBH). O XVII ENCOB foi realizado entre os dias 4 e 9 de outubro de 2015, na cidade de Caldas Novas, Goiás, cujo tema foi “Comitês de bacias: a solução”, do qual, segundo os organizadores, participaram 1.432 pessoas. É um evento longo e intenso, que permite experienciar o que foi sugerido por Cavedon (2014) ao lembrar que, para captar o “outro”, faz-se necessário se deixar impregnar pelo mundo dos pesquisados. E, assim, “ouvir, olhar, sentir, escutar, cheirar, deixar os sentidos em alerta para captar tudo o que existe ao redor, se configura como o melhor caminho para enxergar o âmago de determinado grupo”.

O contato com os representantes teve início na fila de embarque do voo de conexão, em clima descontraído. Deste grupo saiu a primeira entrevista, que foi realizada no espaço do evento. Este contato indicou outros, e assim sucessivamente, ou seja, utilizou-se a amostragem não probabilística, nomeada de bola de neve. Nesta técnica adota-se um processo permanente de coleta de informações que “procura tirar proveito das redes sociais dos entrevistados identificados para fornecer ao pesquisador com um conjunto cada vez maior de contatos potenciais” (VINUTO, 2014). A partir das indicações recebidas, buscava-se acessar representantes dos distintos segmentos previstos na legislação e de diferentes grupos, no intuito de acessar narrativas mais plurais.

Observou-se que o contato permanente com os entrevistados criou proximidade e viabilizou o “agenciamento” de outros entrevistados, e as muitas conversas auxiliaram no entendimento sobre grupos formados no espaço do evento. Durante este evento, foi possível acompanhar palestras, oficinas e as interações entre os participantes. Foram realizadas 31 entrevistas com roteiro semiestruturado, realizadas como “conversação” (BOURDIEU, 2007), pois, como esclarece Cavedon (2014), “diante da complexidade do mundo contemporâneo mister se faz entender o ‘Outro’, suas vivências, suas ambiguidades, seus anseios, sua visão de mundo e seus saberes”.

E no ano seguinte, acompanhei o XVIII ENCOB realizado entre os dias 3 e 8 de julho de 2016, na cidade de Salvador, Bahia, com o tema “Comitês de bacias: a gestão das águas acontece aqui” e, segundo os organizadores, foram 1.411 participantes. Durante este evento foram realizadas 25 entrevistas, com média de 40 minutos de duração cada, e acompanhamento de palestras, oficinas e as interações entre os participantes.

No ouvir, percebeu-se que os entrevistados manifestaram a necessidade de obter devolutivas do trabalho que seria desenvolvido, sendo incluídos no escopo do projeto o questionário de pesquisa, que se alinharam às metas de produtividade do financiamento concedido por meio do Edital Pró-Recursos Hídricos da Capes/ANA (16/2017). E assim, teve início a proposta de desenvolvimento da série “Retratos de Governanças das Águas no Brasil” que tem como objetivo contribuir para os estudos sobre a participação e oferecer informações que possam apontar aspectos importantes da capacidade inclusiva dos membros dos organismos colegiados de gestão das águas, tendo como premissa que uma “boa” governança é fundamental para alcançar a segurança hídrica. A série integra o projeto de pesquisa ‘Governança dos Recursos Hídricos’, juntamente com pesquisas desenvolvidas por outros pesquisadores vinculados.

Desde março de 2018, passei a exercer um triplo papel: pesquisadora; subcoordenadora geral do projeto e colaboradora na produção de conteúdo para REBOB. Desenvolvi trabalhos de produção de textos, relatos técnicos de apresentações de painéis de alto nível, vídeos de entrevistas e fotografias em eventos de recursos hídricos, o que colaborou para ampliar a interação com os membros, como uma relação de acolhimento e aceitação em alguns grupos, sendo possível perceber uma “torcida” maior pelo trabalho e a continuidade do processo de agenciamento de membros a serem entrevistados e para o preenchimento dos questionários de pesquisa.

Em resumo, pode-se posicionar o trabalho que originou o projeto financiado e o da minha tese dentro das abordagens do debate do subjetivismo, com pressupostos ontológicos que consideram a realidade como uma construção social e, portanto, utilizam-se instâncias epistemológicas para entender como a realidade social é criada. Porém, também apresenta elementos do objetivismo (as descrições e as classificações, a partir do survey). Entre dois mundos: objetivo e subjetivo, buscando o entendimento de quem são os atores, como indivíduos, que participam dos processos de formulação das políticas das águas no âmbito dos comitês de bacia hidrográfica.

Pelo relato, percebe-se que a construção da tese não ocorreu de forma linear (teoria-categorias analíticascampo-análise). Ele é fruto de um emaranhado de caminhos, de idas e vindas teóricas e do estar em campo, com o objetivo de compreender quem são os protagonistas que participam dos comitês de bacias hidrográficas. Uma pergunta audaciosa se considerarmos que o universo de pesquisa foi composto por 12.004 representantes, incluindo titulares e suplentes, em 203 Comitês de Bacia hidrográficas criados e implementados no país

Aqui, vale citar Michel de Certeau: O caminhar de uma análise inscreve seus passos, regulares ou ziguezagueates, em cima de um terreno habitado.

O estar em campo nos conduz à constante reflexão sobre pressupostos teóricos ou metodológicos de pesquisa. É um processo de confrontar-se em questões e observações, no intuito de aproximar-se da realidade estudada e alcançar um entendimento. Todo campo ou objeto de pesquisa é passível de investigação por diferentes métodos e técnicas, e cabe ao pesquisador empreender estas escolhas para oferecer a sua melhor versão sobre o tema estudado. O mesmo acontece nas análises dos apanhados de pesquisa, pois, a partir dos mesmos dados, é possível construir diferentes narrativas.

Como mencionado no início do relato, nossas trajetórias de vida, em alguma medida, moldam nossa trajetória de pesquisa a partir do que vivemos e as escolhas que fazemos no percurso de formação continuada pessoal e profissional… São conjunturas que moldam o percurso, nossas construções. Ou ainda, é a vida “mutirão de todos, por todos remexida e temperada” do escritor mineiro que encontramos enquanto caminhamos, como disse o poeta espanhol “se hace camino al andar”.

O desenvolvimento do trabalho de tese (Retratos de Governanças das Águas no Brasil: Um estudo sobre o perfil dos representantes membros de Comitês de Bacia Hidrográficas) se interlaça a outras publicações vinculadas ao projeto financiado. Nosso objetivo foi demonstrar quem são os atores, como indivíduos, que participam dos processos de formulação das políticas das águas no âmbito dos comitês de bacia hidrográfica, no âmbito dos estados. E, ainda, apresentar reflexões e propostas, a partir do desenvolvimento do trabalho e dos dados obtidos.

Com o desenvolvimento da pesquisa, observouse a existência de dificuldades internas e externas aos comitês de bacia. Assim, apesar de os comitês de bacia hidrográfica constituírem-se importantes mecanismos participativos e deliberativos em que os diferentes atores vinculados à gestão de recursos hídricos se articulam ao considerar uma configuração de governança, os problemas enfrentados pelos atores dificultam o engajamento e funcionamento destes fóruns participativos. Dessa forma, ao analisar os desafios enfrentados pelos comitês, as limitações apontadas nas percepções dos representantes reverberam na dificuldade em exercer plenamente o exercício da deliberação, e que todos os interessados possam participar, independentemente de suas capacidades e de seus recursos. Nota-se também que os respondentes indicaram que a sociedade, no geral, ainda é alheia às atividades dos comitês. Nesta lógica, dentre os desafios a serem superados está o aprimoramento dos meios de divulgação, dentre outros aspectos.

Portanto, estudar a representação em espaços deliberativos colabora para o desenvolvimento fornecimento de conhecimentos sobre os modos pelos quais os esforços de ampliar a participação de diferentes setores da sociedade se dão. O aprimoramento da representação social é fator importante para garantir a legitimidade de tais espaços. Tal aprimoramento implica em que todos os grupos de interesse estejam representados, que tais representantes tenham a mesma condição de apresentar suas ideias, debater e se posicionar em relação à tomada de decisões.

Todos os estudos produzidos e publicados não seriam possíveis ou seriam distintos se não constassem com a participação de dois importantes protagonistas: Ivan Beck Ckagnazaroff (meu orientador no doutorado e membro no projeto) e Alexandre de Pádua Carrieri (coordenador do projeto, pesquisador 1A do CNPq). Cada um, a seu modo, com sua expertise, tiveram (e ainda têm) importante papel desde o início no desenvolvimento dos projetos de pesquisa.

Os primeiros resultados divulgados:

Em 2018, a UNESCO lançou uma chamada para a primeira publicação da “Global Water Security Issues Series”, com o tema “Water Security and the Sustainable Development Goals”. Submetemos a proposta de um artigo, que foi revisado (double blind review) e aprovado para publicação. No estudo publicado “Governance and Water Security: Analysis of the profile of representatives do river basin organizations in Brazil” apresentamos os resultados preliminares da pesquisa.

Sobre o perfil dos representantes, os dados permitem traçar o seguinte panorama: em sua maioria, eles são do sexo masculino (69%), pertencente às classes média e alta (73,6% ganham acima de R$ 4.001,00), de alta escolaridade (60% ingressaram em cursos de pósgraduação) e têm mais de 51 anos de idade. Percebeuse também maior concentração dos respondentes em certas áreas de formação, destacando-se os cursos de Engenharias (28%). A partir dessa caracterização podese analisar e discutir se os organismos de bacia são capazes de incluir sujeitos que estão tradicionalmente pouco inseridos em espaços de decisão.

Sobre o tempo de participação em comitês de bacia notou-se que a maioria dos respondentes (64%) é de membros de comitê por período inferior a 6 anos; e 47% dedicavam menos de cinco horas por mês em atividades relacionadas aos comitês de bacias. Observou-se também que 39% dos respondentes, além de participarem de comitês de bacia hidrográficas, também são membros de outros organismos colegiados, em especial de conselhos municipais, estaduais e nacional de meio ambiente.

Outro dado apresentado nesta publicação foi a percepção sobre a compreensão e o entendimento dos representantes sobre os assuntos tratados e linguagem utilizada nas reuniões. Sendo destacado pelos respondentes que os membros dos comitês compreendem apenas parcialmente os assuntos (61%) e a linguagem utilizada (46%).

Com o desenvolvimento da pesquisa, observou-se que em muitas bacias hidrográficas do país os comitês ainda não foram implantados. Além disso, mesmo no caso de comitês ativos, ainda existem limitações relacionadas à integração, comunicação e retorno à sociedade; investimento adequado dos recursos; e a implementação dos instrumentos de gestão (como os planos de gestão da bacia); escassez de recursos financeiros onde ainda não há a cobrança pelo uso da água.

A série Retratos de Governanças das Águas no Brasil

Com o desenvolvimento da série “Retratos de Governanças das Águas no Brasil” busca-se contribuir para os estudos sobre a participação e oferecer informações que possam apontar aspectos importantes da capacidade inclusiva dos membros dos organismos colegiados de gestão das águas, tendo como premissa que uma “boa” governança é fundamental para alcançar a segurança hídrica. Em cada publicação da série buscamos apresentar as especificidades identificadas em cada estado (especialmente com os dados qualitativos), mas mantendo uma linha de apresentação que permita a realização de análises comparadas entre os estados.

Trata-se de uma pesquisa exploratória e descritiva na qual procurou-se, descrever a característica dos atores que participam da gestão dos recursos hídricos, com vista a identificar: quem são os atores que participam dos processos de formulação das políticas das águas no nível de bacias hidrográficas, como os representantes percebem o seu envolvimento no processo decisório, e visão sobre o funcionamento dos organismos colegiados, atualização do número de comitês criados e em funcionamento, seu o número de membros conforme regimentos internos e a quantidade de membros ativos

A coleção sobre os comitês estaduais de bacias hidrográficas, ainda em desenvolvimento, pode ser acessada nos sites do Observatório de Governança das Águas e do Núcleo de Estudos Organizacionais e Sociedade, e nas plataformas de compartilhamento:

* SlideShare – https://pt.slideshare.net/fcmatosbh/documents
* ResearchGate – https://www.researchgate.net/profile/Fernanda_Matos3

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