Plano de Recursos Hídricos da Região Hidrográfica do Paraguai: Construção e Consequências Regulatórias

A Região Hidrográfica do Paraguai (RH-Paraguai) abriga o Pantanal, maior área úmida do mundo, e os biomas Amazônia e Cerrado, e configura-se como uma área de grande relevância ambiental e de recursos hídricos e, ao mesmo tempo, muito sensível a alterações em seu meio.

A região é marcada por duas grandes unidades de relevo (Figura 1): planalto e planície pantaneira, que apresentam forte relação de interdependência, sendo os processos ecológicos e o equilíbrio ambiental da região de planície influenciados pelo o uso dos solos e as ações que ocorrem nas partes altas da bacia. Também é no planalto que grande parte das chuvas ocorrem, o que garante o pulso de inundação da planície pantaneira. Além disso, devido aos tipos de solo e ao uso e ocupação identificados na região, são criadas condições propícias a uma alta produção de sedimentos no planalto, os quais são carreados pelos cursos d’água para as regiões mais baixas, depositando-se na planície, onde as reduzidas velocidades de escoamento favorecem sua sedimentação. Essas características apontam a importância da gestão dos recursos hídricos nessa bacia.

Com o objetivo de orientar as ações de gestão de recursos hídricos nessa região hidrográfica, em 17 de dezembro de 2013, o Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) decidiu, por meio da Resolução n° 152/2013, pela elaboração do Plano de Recursos Hídricos da Região Hidrográfica do Paraguai (PRH Paraguai), a qual foi coordenada pela Agência Nacional de Águas (ANA), com início em dezembro de 2014 e duração de três anos

O processo de elaboração contou com o monitoramento do Grupo de Acompanhamento da Elaboração do PRH-Paraguai (GAP), formado por 30 membros, sendo 12 do Poder Público, 12 dos Usuários e 6 da Sociedade Civil, e apoio dos Estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Foram realizadas 15 reuniões do GAP, cujos membros puderam conhecer e discutir os resultados dos estudos e dar contribuições ao Plano. O processo contou, ainda, com a realização de uma série de eventos públicos que tiveram por objetivo a difusão, mobilização e participação social, informando e ouvindo a sociedade da bacia e contribuindo para uma construção participativa do Plano, em todas as suas etapas de elaboração.

Foram realizadas duas rodadas de eventos ao fim de etapas do Plano – diagnóstico/prognóstico e plano de ações/ áreas de restrição. Em cada uma delas aconteceram três reuniões públicas e três oficinas de trabalho, em cada um dos dois estados. Em Mato Grosso, os eventos aconteceram nas cidades de Cáceres, Rondonópolis e Cuiabá; e em Mato Grosso do Sul, em Corumbá, Bonito e Coxim. Além dessas, houve apresentação do Plano nos dois conselhos estaduais de recursos hídricos e divulgação para a sociedade em geral e para jornalistas, também em cada um dos estados. No total, foram realizados 18 eventos públicos, que contaram com a participação de mais de mil pessoas.

Houve, portanto, a preocupação de que os estudos técnicos realizados aportassem conhecimento a um público amplo e representativo da sociedade civil da RH-Paraguai e, em contrapartida, permitissem que fossem recolhidas contribuições, críticas e sugestões que enriqueceram os resultados obtidos e assim delineassem diretrizes e propostas mais aderentes às percepções, expectativas e visões de futuro das comunidades envolvidas.

Após essa construção participativa, o GAP aprovou o encaminhamento do PRH Paraguai ao CNRH em 13 de dezembro de 2017 e, cumprindo o rito legal, o Plano passou por avaliação de duas câmaras técnicas do Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) – a Câmara Técnica do Plano Nacional de Recursos Hídricos (CTPNRH) e a Câmara Técnica Institucional e Legal (CTIL), a qual encaminhou o documento para a Plenária do CNRH.

O PRH Paraguai foi aprovado por unanimidade pelo CNRH em sua 40ª Reunião Extraordinária, o que resultou na emissão da Resolução nº 196, de 8 de março de 2018.

As ações do PRH Paraguai (Plano de Ações) foram estabelecidas em quatro componentes estratégicos, imprescindíveis para viabilizar o alcance das finalidades maiores do Plano, que são a sustentabilidade hídrica da região hidrográfica do rio Paraguai e a sustentabilidade operacional do próprio PRH Paraguai.

Visando a sustentabilidade hídrica da RH Paraguai e a solução de conflitos pela água, o Plano propôs ações importantes visando a implementação e aperfeiçoamento dos instrumentos de gestão, como o desenvolvimento de estudos de alocação de água e definição de prioridades de usos em microbacias com alto comprometimento hídrico, bem como ações para compatibilização do balanço hídrico (quali e quantitativo).

Outra ação importante envolve os estudos sobre a avaliação dos efeitos da instalação dos empreendimentos hidrelétricos na RH Paraguai, que foi um dos principais motivadores da elaboração do Plano.

O tema dos empreendimentos hidrelétricos, além de ter sido motivador para a elaboração do PRH Paraguai, foi uma das questões centrais ao longo de toda a discussão, dado ao risco de impacto sobre outras atividades econômicas e sobre o meio ambiente. Atualmente, o potencial hidrelétrico na RH é explorado por meio de 7 usinas hidrelétricas (UHE), 29 pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) e 11 centrais geradoras hidrelétricas que se encontram em operação (ANEEL, 2017), cuja localização é apresentada na Figura 2.

Há também 11 empreendimentos em estágio de construção (não iniciada ou com outorga), sendo 1 UHE e 10 PCHs e estão previstos outros 120 empreendimentos hidrelétricos na RH-Paraguai, dos quais 52 se encontram em estágio de projeto e 68 em estudo, totalizando 1.172 MW, o que corresponde a dobrar a capacidade atual instalada na região, que é de 1.111 MW (dados do diagnóstico consolidado do PRH Paraguai). A instalação de todos esses empreendimentos acrescentaria apenas 1% à capacidade instalada no Sistema Interligado Nacional (SIN), que é de 101.598 MW (ONS, PEN 2017).

As análises e os debates realizados desde o início da elaboração do PRH Paraguai demonstraram preocupação com os impactos socioeconômicos e ambientais gerados a partir da instalação de empreendimentos hidrelétricos na RH-Paraguai.

Essas preocupações foram relatadas também pela população local durante as Reuniões Públicas realizadas no âmbito do PRH Paraguai. Foram expostas dificuldades em assegurar os usos múltiplos das águas em rios com empreendimentos hidrelétricos e manifestações contrárias ao estabelecimento de novos empreendimentos.

De fato, os impactos na RH-Paraguai, principalmente no Pantanal, são desconhecidos até o momento, sobretudo em termos da sua capacidade de alteração do pulso de inundação dos rios, do transporte de nutrientes e sedimentos pelos corpos hídricos e da interrupção da rota migratória de diversas espécies de peixes, muitas de potencial econômico e algumas possivelmente endêmicas.

Consequentemente, pouco se sabe sobre os possíveis impactos em outros usos econômicos dos recursos hídricos no Pantanal, principalmente a pesca e o turismo. O desconhecimento da extensão dos custos sociais e ambientais desses novos empreendimentos gera incertezas que dificultam a garantia dos usos múltiplos da água.

Diante da necessidade de aprofundamento sobre o tema das hidrelétricas e seus potenciais efeitos na RH-Paraguai, e considerando o papel da ANA em garantir os usos múltiplos, a Agência está conduzindo estudo específico com a Fundação Eliseu Alves e em parceria com a Embrapa Pantanal e diversas universidades, com foco na avaliação dos possíveis efeitos da implantação de empreendimentos hidrelétricos na região hidrográfica, a partir de dados primários e secundários.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Esse estudo faz parte do Plano de Ações do PRH Paraguai e sua conclusão é prevista para o primeiro semestre de 2020. Os resultados desse estudo em elaboração serão essenciais para subsidiar a ANA e os órgãos gestores de recursos hídricos de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul em suas ações na RH Paraguai.

Nas diretrizes para outorga, apresentadas no PRH Paraguai, inclusive, estabeleceu-se que os procedimentos e metodologias de análise de outorgas para aproveitamentos hidrelétricos devem ser revisados a partir dos resultados consolidados desses estudos em curso pela ANA e que os pedidos de Declaração de Reserva de Disponibilidade Hídrica (DRDH) ou Outorgas para novos aproveitamentos hidrelétricos na RH-Paraguai devem aguardar os resultados desses estudos para a conclusão de suas análises.

Assim, diante do desconhecimento dos impactos da instalação de novos empreendimentos hidrelétricos na RH-Paraguai e com o objetivo de explicitar a consequência regulatória do PRH Paraguai, a ANA emitiu a Resolução n° 64, de 4 de setembro de 2018, resolvendo pelo sobrestamento da análise dos requerimentos de DRDH e de Outorgas de Direito de Uso de Recursos Hídricos para usos com fins de aproveitamento dos potenciais hidrelétricos na RH-Paraguai, nos rios de domínio da União, até 31 de maio de 2020, data prevista para a finalização dos estudos em execução pela Fundação Eliseu Alves.

Ressalta-se que a expectativa é que os resultados obtidos ao longo dos estudos poderão ensejar ajustes aos atos normativos da ANA, mediante o aporte de novos elementos técnicos. Ou seja, quando os estudos apresentarem conclusões sobre trechos de rios ou bacias específicas, em que os impactos previstos possam ser admitidos, de acordo com condicionantes e critérios necessários, a Resolução nº 64/2018 poderá ser atualizada com a possibilidade de início ou retomada da análise de pedidos de DRDH e outorga na Região Hidrográfica.

Dessa forma, espera-se que o instrumento de outorga esteja mais adequado às características e necessidades da RH Paraguai, propiciando garantia dos usos múltiplos de água na região, segurança aos usuários de água e equilíbrio das condições de seus recursos hídricos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Marcelo Cruz

Economista, Diretor da Agência Nacional de Águas e ex-Secretário-Executivo do Ministério do Meio Ambiente.