Da falta d ́água, o que sobra e o que soçobra?

A falta de água que assola o país, principalmente o Sul e o Sudeste, é uma realidade incontestável. Só o gato lá de casa é que tem gostado.

Mas, gatos à parte, qualquer gato, o que pode sobrar de positivo na crise?

Já cansei de ouvir dizer que o ideograma chinês, uns dizem que é japonês, o ideograma chinês que representa a palavra “crise” é o mesmo que representa a palavra “oportunidade”. Mesmo que o chinês não saiba disso, ainda assim a história vem sendo repetida nas palestras motivacionais hoje na moda, inclusive tendo sido utilizada por Kennedy e por Nixon, republicanos e democratas, trabalhistas e tucanos.

O fato é que, muitas vezes, quase sempre, o mundo achou soluções nas crises. Malthus, economista britânico do século XIX, dizia que a humanidade ia morrer de fome, pois a produção de alimentos crescia em progressão aritmética, 2, 4, 6, 8 e assim por diante, enquanto que a população crescia em progressão geométrica, 2, 4, 8, 16.

De lá para cá, inventaram os fertilizantes e as pílulas anticoncepcionais. O jogo entre os alimentos e a população ficou mais ou menos empatado.

Da mesma maneira pode servir de exemplo a escassez de combustíveis fósseis, o petróleo. O caos que se avizinhava pela falta do óleo já está se ajeitando com o desenvolvimento de outras fontes de energia, a elétrica, a eólica e, sobretudo, a atômica. Sem falar da produção de álcool, solução genuinamente brasileira, tão negligenciada.

Com o ideograma ou sem ideograma, o fato é que, das crises, sempre surgiram soluções.

Ainda recentemente, no Brasil, em 2001, passamos por grande provação pela falta de energia. Logo se mudaram os hábitos, apareceram eletrodomésticos mais econômicos e lâmpadas fluorescentes para substituir as velhas lâmpadas tradicionais. Resultado, o consumo de energia caiu, o Brasil sobreviveu.

Agora a pauta é a água.

O Brasil, sobretudo aqui em São Paulo, até outro dia achava que tinha toda água do mundo a seu dispor. O brasileiro comum tomava banhos demoradíssimos, fazia a barba debaixo do chuveiro cantando “o sole mio”, lavava o carro e utilizava o esguicho como vassoura na calçada. A água era um bem infinito, como dizia a velha canção de carnaval consagrada por Emilinha Borba: “a água lava, lava, lava tudo”.

Em artigo anterior, publicada nesta revista, afirmei: “estima-se que a Terra, nosso planetinha azul da cor do mar, tenha cerca de 1,4 bilhão de km3 de água. Entretanto, desse volume imenso, de matar a sede de multidões de bebuns de ressaca, 97% se referem à água salgada. Dos 3% restantes, quase tudo é gelo nas calotas polares ou dos aicebergues em busca de titaniques, restando, apenas, 0,001 do total como água doce utilizável. É isso mesmo, zero vírgula zero zero um.

E a gente fazendo xixi nesta merreca que sobrou. O Brasil detém 12% da merreca. Mas a Amazônia, com 7% da população, conta com 70% das águas superficiais brasileiras. Já as regiões Nordeste e Sudeste, com 70% da população, contam, apenas, com 9% dos recursos hídricos superficiais”. E acrescentava: “Na Bacia do Alto Tietê, que abrange a região da Grande São Paulo, a disponibilidade hídrica é de 201 m3 por habitante num ano. Em Pernambuco, o Estado com menor disponibilidade de água no Brasil, é de 1.320 m3”.

Este mesmo artigo do qual copiei o trecho entre aspas eu encaminhei no começo de 2013 para a Folha de São Paulo, avisando que podia faltar água na macro-metrópole. Não tomaram conhecimento.

Mas nem por isso a vaca foi definitivamente para o brejo, embora esteja faltando brejo.

José Saramago, escritor português, dizia que o único defeito das vitórias é que elas não são definitivas. Eu poderia parafrasear ao contrário. A única vantagem das derrotas é que elas também não são definitivas.

A crise da água foi uma derrota para a sociedade que imaginava que o bem era infinito. Mas como as derrotas não são definitivas, por outro lado, a crise também trouxe a conscientização de que é preciso economizar no consumo. Além disso, e, sobretudo, é preciso tratar melhor a água, reflorestando os mananciais, tratando os efluentes, interligando as bacias, construindo casas para evitar as invasões das margens dos rios, aperfeiçoando o controle das outorgas e, finalmente, mesmo com todas as providências, ter consciência de que a macro metrópole São Paulo tem água insuficiente, mesmo nos anos chuvosos, para continuar a crescer indefinidamente.

Luiz XIV sempre repetia que “depois de mim o dilúvio”, pouco se importando com as gerações que iriam sucedê-lo. Seu filho, o XV, morreu na guilhotina. O fato é que nem o dilúvio resolveria nosso problema se continuarmos a ser irresponsáveis com o meio ambiente e, especialmente, com a água.

Acho que a lição, o alerta e o aprendizado é o que fica de bom na crise. E quanto à música de carnaval que Emilinha Borba cantava, vale a pena lembrar de todo o refrão: “você notou que eu estou tão diferente, a água lava, lava, lava tudo, a água só não lava a língua dessa gente”.

 

 

Sérgio Antunes
sergioantunes@ig.com.br
Procurador Autárquico do
Estado de São Paulo, exercendo suas funções no DAEE
– Departamento de Águas e Energia Elétrica