Brasília: a capital das águas

Brasília, a “Capital da Esperança”, acaba de tornar-se “Capital Mundial das Águas”, e manterá esse título até março de 2018, quando sediará o VIII Fórum Mundial da Água.

Brasília nasceu de um sonho dos brasileiros. Desde a Inconfidência Mineira, já estava presente o desejo de trazer a capital para o centro do país. Com a Constituição Federal de 1891, foi instituída a Missão Cruls, que teve como tarefa fazer um estudo científico do Centro-Oeste e definiu uma área de 14 mil km2 para abrigar a nova capital. Em sua investigação, os cientistas expedicionários registraram características climáticas, topográficas, hidrográficas, e também da fauna e da flora, e produziram um Relatório que, ainda hoje, é referência para estudos sobre a região, do qual extraímos a seguinte citação:

“É exuberante a fertilidade do solo; a salubridade, proverbial; grande abundância de excelente água potável; rios navegáveis, extensos planos sem interrupções importantes; soberbas madeiras de construção de suas grandes florestas; tudo, enfim, que tem as mais estreitas relações com os progressos materiais de uma grande cidade e com o bem-estar de seus habitantes.”

Em 1953, o governo Getúlio Vargas criou a Comissão de Localização da Nova Capital e, em 1954, contratou uma empresa para aprofundar os estudos da Missão Cruls, utilizando a tecnologia mais moderna da época – a intepretação de fotografias aéreas. O Relatório Belcher, produzido por técnicos brasileiros e norte-americanos, é material de qualidade que aborda temas como o clima, o solo, a água, o potencial para gerar energia elétrica. O Relatório comenta que “O Brasil deve ser louvado pelo fato de ser a primeira nação na história a basear a seleção do sítio de sua capital em fatores econômicos e científicos, bem como nas condições de clima e beleza”.

Um concurso realizado em 1956 escolheu o Projeto urbanístico para o Plano Piloto de Brasília, apresentado por Lucio Costa, que, complementado por monumentos desenhados por Oscar Niemeyer, permitiu que, em 1987, Brasília se tornasse a única cidade do século XX a ser incluída na lista de Patrimônio Cultural da Humanidade. Essa breve história mostra que Brasília nasceu sob o signo do planejamento, e manifesta atributos que a tornariam uma cidade SUSTENTÁVEL, usando-se a abordagem de hoje, se fosse observada a proposta original de fazer a gestão de seus recursos naturais e humanos por parâmetros científicos e pelo fundamento democrático.

Meio século depois, Brasília mantém a originalidade de seu projeto inovador, mas acumula problemas comuns a outras metrópoles brasileiras. A ocupação desordenada do território, a urbanização e impermeabilização do solo em áreas de recarga, a perda de nascentes, o excesso de poços em algumas áreas do território, a poluição dos rios, do solo e do subsolo, o rebaixamento dos lençóis freáticos são alguns dos graves problemas causados ao longo dos anos…

Brasília resume desvios e contradições que quase causam a perda das referências de sustentabilidade que orientaram sua criação. Quase. Experiências bem sucedidas de pagamentos por serviços ambientais e de regeneração de matas ciliares, com aumento significativo do fluxo de água, estão sendo adotados, mas precisam ser ampliadas e aprofundadas. No plano nacional, o Programa ‘Cultivando Água Boa’, implantado na Bacia do Rio Paraná, foi recentemente premiado pela ONU e é citado no United Nations World Water Development Report de 2015. É um exemplo de boas práticas no nível de bacias hidrográficas a ser seguido.

O Brasil, e Brasília, em particular, têm agora grande oportunidade para realizar um trabalho de mobilização popular e de envolvimento político e institucional nas questões da água: o Fórum Mundial da Água.

O tema do VIII Fórum é “Compartilhando Água”. Não poderia haver lema mais adequado para um país que tem, como fundamentos de sua Lei das Águas (Lei 9.433/1997), o reconhecimento de que “a água é um bem de domínio público”, e a determinação de que “a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas”, “ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades”.

É interessante notar que o espírito da Lei traz, em seu bojo, pelo menos quatro conceitos que estão associados no Dicionário Analógico do Professor Francisco Ferreira Azevedo ao termo ‘compartilhar’: partilha, concórdia, participação, cooperação. Nessa relação analógica, está expressa a concepção de que a água, um bem finito, deve ser partilhada, tal como o ar, não sendo propriedade do Estado, nem de ninguém em particular.

Mesmo em seus múltiplos usos para fins econômicos, a água deve ser dividida e distribuída entre todos os interessados. Isso requer um estado de conformidade de pensamento e sentimentos de todos os atores em relação a uma situação na qual todos cedem e recebem benefícios. Esse estado pressupõe conjugação de esforços, concordância com regras, mobilização de afinidades entre os usos da água, promoção de alianças entre os setores envolvidos.

Naturalmente, é preciso agir de maneira articulada e cooperativa para que todas as bacias hidrográficas sejam geridas de forma racional e democrática. Fica então evidente que todos devem participar da gestão. No território da bacia, o compartilhamento estabelece certa assimetria, entre afluentes e rio principal, que pode ser superada com o sentimento de copropriedade. Bacias contíguas e transfronteiriças exigem comunhão de interesses e cooperação, para que benefícios mútuos da gestão sejam integrados.

A gestão da água depende, portanto, de um clima de harmonia, participação e entendimento, o que requer ainda uma base comum de informações. Para tanto, a Lei das Águas prevê um sistema descentralizado na produção de dados e garante acesso à informação a todos os interessados.

Da mesma forma, tecnologias adequadas devem ser implementadas para que a captação das águas pluviais seja efetiva, o reuso seja generalizado, e o acesso à água potável e ao saneamento básico seja prioritário e universalizado.

O Fórum Mundial da Água em Brasília é um chamado a essas práticas, que passa a ecoar desde agora. “Compartilhando água” é a receita que vamos adotar para construir um futuro de paz e solidariedade para o nosso planeta.

 

 

 

Paulo Salles
Secretário de Estado de Ciência, Tecnologia e Inovação de Brasília e
Vice-Presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Paranoá.